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domingo, maio 09, 2004

Ascensão e queda do Diego – parte final  

Por Diego Corneta

Diego inspirou uma igreja e uma religião na Argentina. Os “maradonistas” cultuam-no como um enviado especial de Deus, um verdadeiro santo, um messias. Esse fato, por si só, já rende muitas reflexões. Maradona foi um dos grandes. Para muitos, ele está abaixo apenas do Pelé. E para alguns, ele está acima inclusive do Pelé. Sua vida pessoal é um tango argentino lamurioso e cheio de provações. Não sabe administrar suas contas e está endividado; teve diversas relações extraconjugais; é briguento e até violento; atirou, com uma espingarda de chumbo, em jornalistas (leia-se paparazzi). Isso tudo somado à sua doença, o vício pela cocaína. Tirando seu futebol genial, “El Pibe D’oro” não pode ser considerado um bom exemplo de nada, nem de atleta. Sempre foi avesso aos treinos táticos e físicos. Ele é um verdadeiro anti-herói, no sentido literal e visceral que esse termo denota.

Traçando um paralelo com o Pelé, podemos afirmar que este sim foi um exemplo de atleta dedicado, de empresário bem sucedido (por mais escusos que possam ser os meios para obter o sucesso. Lembrem-se, desde que os fins sejam lucrativos, no capitalismo os fins justificam os meios). Pelé nunca foi visto ingerindo sequer uma gota de álcool. Nunca foi protagonista de escândalos. Por mais filhos que o Pelé possa ter tido fora de seus casamentos, ele sempre foi visto como pai dedicado. Aliás, na nossa sociedade machista, filhos fora do casamento são perdoados. Nesse ponto, Pelé e Maradona foram absolvidos. Onde eu quero chegar é o seguinte: na somatória dos eventos, Pelé teria, teoricamente, muito mais motivos para ser cultuado, mas não é. Justamente o contrário. Hoje há uma clara distinção entre o Pelé, o jogador, e o Édson, o homem. Maradona é um só. Parece não haver distinção com contornos tão bem definidos, como acontece com Pelé. Não há Maradona, o jogador, e Diego, o homem.

Tudo bem, eu concordo que 1958, 1962 e 1970 estão muito mais distantes do que o ano de 1986. Mas o fato é que mesmo durante o auge da sua carreira, Pelé nunca foi tão amado como Maradona ainda é. Sei que muitos podem discordar dessa última afirmação, mas os fatos estão aí para todo mundo ver e tirar suas próprias conclusões. Diego é amado a tal ponto que o permite agir como se fosse imortal, como se fosse Deus. Ele, há semanas atrás, fugiu da internação e foi jogar golfe. E mais, abusou da comilança e da bebedeira (e, por que não ao menos desconfiar, abusou da cocaína) a tal ponto de ser internado novamente. É algo inacreditável ! Como é que os médicos, amigos e familiares permitem ? Só há uma resposta: ele é o Maradona. Sem dúvida nenhuma ele é, ao lado de Evita Perón e Che Guevara (sim, Che era argentino), a figura mais carismática da Argentina. Ele significa muito para o imaginário e para a cultura daquele país. Diego é o homem que vingou a derrota de uma guerra. Diego é o homem que alçou seu país ao posto mais alto do mundo. Diego é o homem dos lances geniais e dos gols espetaculares. Diego é a síntese do povo argentino.

Por mais preconceito e desinformação que nós brasileiros possamos carregar sobre a Argentina, ela é em muitos pontos muito parecida com o Brasil. E no outro lado da moeda, por mais superiores e “europeus” que os argentinos possam se julgar, eles são latino-americanos sim. Eles vivem sob a égide de Simon Bolívar, convivem com miséria e injustiça. São passionais e também são um povo de fé. Fé não no sentido cristão, restrito. Mas no sentido de apegar-se a qualquer coisa que a justifique. Medalhinha, santinho, imagens, colarzinho, e Maradona. Essa devoção e essa busca frenética por algum deus em todos os lugares e em todas as coisas é uma manifestação típica da América Latina. Europeus não fazem isso. Norte-americanos não fazem isso. Asiáticos não fazem isso. Os latinos são exagerados, a fé sertaneja que impregna o interior do Brasil é um bom exemplo disso. Toda região tem seu milagreiro e “santo” particular. Seja Padre Cícero no nordeste ou o Menino da Tábua em Assis e região. Esse fato se repete na América Latina inteira. Os latinos não têm pudor em exaltar seus sentimentos, compartilhar sua solidão e transparecer sua falibilidade diante da vida. Não há como negar, somos carentes.

Diego Armando Maradona se encaixa perfeitamente dentro desse contexto. E ele sabe disso, de uma forma consciente ou não. Ele sabe e age exatamente como seus devotos esperam. A multidão rezando por ele na porta do hospital, as imagens de todas as mandingas e simpatias possíveis, também na porta do hospital, exaltam e enaltecem o mito, a simbologia em torno do homem. Maradona é romântico e trágico. Carrega consigo todos os anseios e expectativas de um povo oprimido e sofrido. Os argentinos, assim como nós, não se recuperaram do terrível espólio da ditadura. Lá, a linha dura foi mais cruel que aqui. Na época da ditadura, morreram mais argentinos do que brasileiros. Maradona representa a possibilidade de transcender a previsibilidade da vida, representa a liberdade em transgredir, seja de uma maneira gloriosa, ou de uma maneira trágica. E é com tristeza e pesar no coração que eu, um fã assumido, assisto sua derrocada. Deveria e merecia ter um final mais digno. Essa hipótese me parece cada vez mais distante, até porque para os heróis e anti-heróis, o fim é inevitavelmente trágico, caso contrário seriam normais como todos nós. Jesus Cristo, Evita Perón, Ayrton Senna, Che Guevara, e muitos outros que o digam.

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